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LGBT / Entrevista

Rafael Gomes fala sobre representatividade gay e luta contra o preconceito: ''Uma batalha a se vencer''

Diretor e roteirista filosofa sobre cinema, teatro e protagonismo gay em seus novos projetos

Leandro Fernandes Publicado em 30/06/2019, às 10h32 - Atualizado em 07/08/2019, às 17h47

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Rafael Gomes - Divulgação
Rafael Gomes - Divulgação

Você pode não associar o nome à pessoa, mas com certeza já teve contato com o trabalho de Rafael Gomes.

O diretor e roteirista tem um currículo extenso: trabalhou com Esmir Filho no curta-metragem Tapa na Pantera, foi o showrunner da série da TV Cultura Tudo Que É Sólido Pode Derreter e co-showrunner em 3 Teresas, do GNT. Nos últimos dez anos, ele se tornou também um nome importante do teatro nacional. Sua primeira peça, Música Para Cortar os Pulsos, estreou originalmente em 2010 e ganhou diversos prêmios, dando a Rafael espaço para dirigir uma montagem de Um Bonde Chamado Desejo, amplamente aclamada.

Minha conversa com Rafael ocorreu através de e-mails e a complexidade do diálogo criou a necessidade de que a entrevista fosse editada para facilitar a leitura. Os diálogos, no entanto, estão reproduzidos da maneira mais fiel possível neste artigo, buscando preservar principalmente a voz de Rafael como o grande foco. As perguntas dialogam com aquelas que fizemos ao também diretor e que foi namorado de Rafael por dez anos, Daniel Ribeiro.

Em maio de 2019, Rafael fez sua estreia como diretor no cinema ao lançar a primeira parte da trilogia Corações Sentimentais: 45 Dias Sem Você. O longa foi gravado sem patrocínios e recursos governamentais, no maior estilo cinema de guerrilha e foi lançado com uma estratégia corajosa, que Rafael explicou em nossa conversa: "O filme tinha uma realidade muito específica de ter sido auto-financiado e uma escolha consciente de não recorrer a outras formas de financiamento público para ter verba para seu lançamento. Não por princípios ou ideologia, apenas pela natureza do projeto mesmo. Então nós não tínhamos como lançá-lo em muitas salas, porque não havia orçamento de distribuição para isso. De modo que a O2 Play, nossa distribuidora, apostou nessa ideia de usar o cinema como vitrine (um filme que entra em cartaz sai nos guias de programação, vira assunto em sites e redes e afins, de um modo que não acontece com um título que vai direito pro VOD) e criar essa oferta que pode ser vista como 'irrestrita'."

"Ou seja, a partir do dia de lançamento, em qualquer lugar do Brasil, a qualquer hora, quem quisesse ver o filme poderia vê-lo. Não temos ainda números consolidados da carreira em VOD, mas sem dúvida alguma essa estratégia fez com que o filme fosse visto por mais gente do que aconteceria se ele, sendo do tamanho que é, tivesse um lançamento tradicional."

Filmado antes das crises que têm atingido os programas de incentivo cultural no atual governo, 45 Dias Sem Você é uma prova de que há alternativas, mas Rafael não acredita numa queda da produção cinematográfica no Brasil: "A gente tem que acreditar que ainda existe esperança, senão paramos tudo agora e mudamos de profissão. Mais do que 'esperança', acho que é sobre resistência e enfrentamento. Há coisas que são maiores do que a ideologia de um governo e a cultura audiovisual de um país é uma delas. Então vai, sim, continuar existindo a produção cinematográfica, até porque trata-se de uma indústria grande e milionária, uma atividade econômica que já se faz imprescindível setorialmente."

"Mas, sim, o cinema de guerrilha sempre será uma saída. Acho importante e fértil praticá-lo. A necessidade gera muita criatividade, como manda o clichê (e os clichês são verdade!). Só não dá para o cinema de guerrilha ser encarado como a primeira ou a principal alternativa de produção. Ele é o escape, o atalho que se pega quando todos os outros caminhos estão fechados. O ponto é que não se pode aceitar que todos os outros caminhos se fechem, simples assim", finaliza.

REPRESENTATIVIDADE

Mas o papo começou falando sobre protagonismo gay e representatividade. O diretor tem referências muito claras de como foi o primeiro momento de reconhecimento em obras audiovisuais, ambas vindas da TV americana. "Lembro de duas séries de TV que foram lançadas durante minha adolescência e que desempenharam um papel de representatividade bastante importante para mim. Uma delas foi Dawson's Creek (1998). Ali havia a junção de duas pessoas que eu queria ser, mesmo que não tivesse a consciência plenamente formulada sobre isso: um protagonista com aspirações artísticas e, embora heterossexual, com uma visão humanista e sensível do mundo; e um adolescente abertamente gay, retratado sem chavões ou estereótipos. A outra série, atuando um pouco mais dentro do chavão, mas ainda assim marcando um lugar forte dentro do 'mainstream', foi Will & Grace, também de 1998."

Em relação à crescente abertura para que atores e atrizes de destaque falem sobre suas sexualidades, Rafael vê como algo super positivo, mas que não influencia tanto a produção dos filmes. "Eu acho importante demais que atores e atrizes que possuem grande alcance de comunicação com o público falem abertamente sobre sua sexualidade. Acho que poderia acontecer mais, no sentido mesmo de ajudar a desmistificar determinadas questões, fazê-las chegar em quem não estava pensando no assunto e passa a pensar (e, com sorte, abrir a cabeça) a partir da experiência ou do depoimento de alguém que é admirado."

"Em termos da sexualidade do ator determinar sua capacidade de interpretação de um papel, eu acho irrelevante. A disponibilidade afetiva e humana é que é determinante. Nos três filmes que eu dirigi com protagonistas gays, por exemplo, curiosamente os três atores que os interpretaram são heterossexuais - a escolha não foi pautada por isso, é apenas um dado a posteriori. E digo que isso vale em ambas as direções - tanto para um ator heterossexual poder interpretar um personagem homossexual, quanto para um ator abertamente homossexual poder sem qualquer prejuízo de credibilidade na ficção interpretar um personagem heterossexual", completa, se referindo aos filmes 45 Dias Sem Você, Música Para Cortar os Pulsos e Meu Álbum de Amores, que compõem a trilogia e trazem, respectivamente, Rafael de Bona, Victor Mendes e Gabriel Leone como os protagonistas.

Música Para Cortar os Pulsos, aliás, teve uma trajetória curiosa. A peça nasceu como uma ideia para o cinema, foi adaptada para os palcos e finalmente chegará às telas no segundo semestre de 2019. O diálogo entre teatro e cinema é um tema cheio de nuances para Rafael. "Meu primeiro impulso quando eu leio uma pergunta que diz 'quanto de teatro tem na trilogia?' seria responder: nada! Porque a última coisa que um diretor de cinema quer, salvo em casos específicos, é fazer um filme que soe 'teatral', em todos os maus sentidos que isso pode ter. Ao mesmo tempo, o teatro esteve em mim de forma intensa nos últimos 10 anos, com muitas peças escritas e dirigidas. E a cabeça não é um armário onde se consegue simplesmente abrir uma gaveta e fechar outra. Então por um lado eu diria que tem muito de teatro nos filmes, até porque no teatro que me interessa fazer eu sempre quero acreditar que tem muito cinema."

"Por outro lado, existiu uma vontade constante e forte, durante todo o processo de preparação e filmagem, especialmente dos dois últimos filmes, de se fazer obras que fossem iminentemente 'cinematográficas', seja lá o que isso for. Em termos um pouco mais concretos, eu acho que existem pelo menos dois pontos que o teatro cultiva com mais afinco, e que a prática teatral portanto faz enraizar dentro da gente:  o trabalho com os atores e a atenção ao texto e à encenação. Corpos no espaço, preenchendo o vazio, dizendo algo com sua existência, seus movimentos e suas palavras (ou a ausência delas). Isso é teatro. E isso é cinema também. Por ter feito mais peças antes de fazer filmes, inevitavelmente as noções acerca dessas questões que eu levei para a construção cinematográfica nasceram na ética e na prática do fazer teatral."

UMA MUDANÇA DE PERSPECTIVA

Uma palavra importante no texto original da peça Música Para Cortar os Pulsos é sobre os clichês, afinal, o clichê sempre se baseia na realidade. Mas quando se trata de retratar personagens LGBTQI+, Rafael concorda que eles podem ser bastante prejudiciais. "Essa é uma medida difícil de se ter. Mas pensando no uso pejorativo e fóbico que as pessoas fazem das imagens que recebem (ou que criam), ousaria apontar duas coisas que me parecem especialmente prejudiciais: o clichê da 'depravação', que caminha junto com a ideia de 'promiscuidade' e 'desregramento', que pode ser visto inclusive em um tweet maldoso e irresponsável do presidente da república no Carnaval, por exemplo; e a ideia de que a sexualidade, ou a identidade de gênero, são simples escolhas ou vontades, no sentido de 'desvios' - e aí entra toda a seara de pensamentos como 'não apanhou o suficiente, virou viado', e por aí em diante."

Feita de maneira responsável, o ato de representar pessoas LGBTQI+ surge, então, como um ato político. "A representatividade levanta bandeira. Isso pra mim é indiscutível. E acho que levanta uma bandeira poderosíssima, capaz de adentrar territórios onde as bandeiras de fato, quando colocadas de forma mais, digamos assim, militante, seriam rechaçadas de antemão e não encontrariam qualquer possibilidade de espaço." No entanto, o diretor aponta o tratamento mais natural como um passo em direção a um futuro inclusivo: "Mas também acredito fervorosamente no poder da sutileza e da naturalização silenciosa, em determinados casos. Na ficção televisiva ou cinematográfica, por exemplo, conseguir envolver a plateia com um personagem gay fazendo-a quase não se lembrar que ele é gay (mas ao mesmo tempo sabendo disso claramente e o tempo todo), naturalizando uma existência, uma história e eventualmente zerando o preconceito é um ganho enorme. E uma batalha a se vencer também, mais e sempre."

A obra de Rafael anterior à peça Música Para Cortar os Pulsos era protagonizada majoritariamente por mulheres - e a presença feminina permanece em todos os roteiros, mas houve uma transição para os protagonistas homens e homossexuais. "Aconteceu naturalmente. Acho que tem a ver com um amadurecimento pessoal, um amadurecimento do assunto em si e de parte da sociedade, refletida em seus produtos culturais. Quando fiz meus primeiros curtas-metragens, bem como a série Tudo o que É Sólido Pode Derreter, eu não me sentia seguro, consciente e maduro para bancar um homem gay (portanto um reflexo direto da minha personalidade, nesse sentido) como protagonista de uma obra. E não é que eu soubesse disso então, e tenha escolhido conscientemente centrar o foco em mulheres. É apenas a maneira natural como as coisas se deram. Provocado agora por essa pergunta, eu consigo entender dessa forma. A partir de "Música Para Cortar os Pulsos", a peça, abre-se uma porta sem volta: agora era sobre aquilo ali que eu queria e, mais importante, conseguia falar. Agora a sexualidade estava e está no foco, porque isso é um assunto meu de todo dia e porque se não formos nós a fazer isso, não farão por nós - não com a mesma representatividade e franqueza."