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Exclusivas / TRISTEZA

Em suas novelas, Gilberto Braga desnudou um Brasil em que honestos e trambiqueiros lutam para sobreviver

Autor parte aos 75 anos deixando obras-primas como 'Vale Tudo', 'Celebridade' e 'Dancin' Days'

Gustavo Assumpção Publicado em 26/10/2021, às 22h32

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Gilberto Braga nos colocou contra a parede ao expor - Reprodução/TV Globo
Gilberto Braga nos colocou contra a parede ao expor - Reprodução/TV Globo

Para entender o tamanho de Gilberto Braga, basta fazer uma tentativa frustrada de eleger qual foi seu trabalho mais completo. A histórica A Escrava Isaura, adaptada do romance homônimo? A revolucionária Dancin' Days, ícone cultural dos anos 70? A absoluta Vale Tudo, guia definitivo para se entender o Brasil? A pop e moderníssima Celebridade

Formado em Letras pela PUC/Rio, dono de um francês fluente e com ares de literato europeu do início do século, o autor conseguiu como poucos entender o que era esse país: uma galhofa formada por uma elite que arrotava ares europeus unida a uma gente forte, vigorosa e dona de uma capacidade absoluta de resiliência.

A presidiária Júlia Matos (imortalizada por Sonia Braga no auge de sua beleza e elegância), a absurda e inesgotável Odete Roitmann (da qual Beatriz Segall não se separou até a morte), a encantadora e pueril Lurdinha (vivida pela jovem Malu Mader em Anos Dourados), a cachorra Laura Prudente da Costa (e sua não menos intensa Claudia Abreu): não faltam personagens icônicos e inesquecíveis em suas criações.

Aberto à polêmicas e sem medo de questionar seu próprio público, falou da homossexualidade nos transformadores anos 80 (Água Viva), discutiu tabus geracionais e as mudanças de comportamento (Anos Rebeldes) e sofreu boicotes e represálias justamente quando se imaginava que o mundo era outro (Babilônia, seu último trabalho lançado em 2015). Sempre corajoso e dono de um texto repleto de referências à literatura e seus grandes mestres, é responsável por uma interpretação muito particular sobre nossa realidade, nosso modo de vida e nossas inconsistências. Recorria aos clichês e oportunismos sem medo e com a segurança de quem conhecia (e muito bem) o seu público.

Como não lembrar logo da primeira cena de Vale Tudo, quando Maria de Fátima (que será magistralmente interpretada por Glória Pires), observa em silêncio a discussão entre o pai e a mãe, Raquel Accioli (Regina Duarte)?

O pano de fundo são as relações familiares, mas está sobre a mesa o Brasil confuso da redemocratização: a mãe reclama das contas atrasadas, dos gastos e farras do marido, do nome sujo. Ela é surrada ao expor as inconsistências daquele modo de vida que estava chegando ao fim. No texto certeiro e em pleno diálogo com a realidade, o autor mostra que aqui lutam esfarrapados, espertos e honestos por uma vida digna.

Já crescida e com sua conhecida 'mania de grandeza', Maria de Fátima entra em um esquema fraudulento e pede ajuda à família. Diante da negativa, expõe o desgosto com o país, a decepção com a postura das classes dominantes, critica a certeza da impunidade, a corrupção que corrói a capacidade de se construir um país mais igual.

"O último homem honesto do Brasil [diz ela ao avô]! Merecia uma reportagem no Fantástico. Agora, vai adiantar o que isso? Chegar na velhice com uma mão na frente e outra atrás e uma porcaria de uma casa no fim do mundo. Aqui é um país de trambiqueiro. Vai conseguir o que com sua honestidade? Aqui ninguém presta, ninguém vale nada. Ninguém cumpre nenhuma lei", diz.

Ao expôr sua vilania, a jovem mostra que duas ideias de Brasil colidiam para a construção de um "novo tempo": de um lado a classe trabalhadora que tentava sobreviver ao fracasso do milagre econômico. De outro, a ambição daqueles que se despiam de toda ética para baterem no peito e afirmarem aos quatro ventos que, neste país em que nada é sério, vale tudo.

"Não, mania de grandeza não!", grita Raquel (Regina Duarte) desesperada diante do ímpeto da filha.

De nada adiantou: nessa tragédia urbana que é Vale Tudo, a gente gira em círculos e acaba no Brasil de 2021, agora sem Gilberto Braga. Só um grande autor é capaz de nos colocar contra a parede e nos fazer refletir.

O Brasil perde neste 26 de outubro um de seus intérpretes.